Diário de Produção – “Meninas” – Parte 4

Entrevistar a mineira Stella Vilella não é fácil. Só é fácil entrevistar os exibidos, os que não se importam de jogar palavras, os que as atiram ao vento. Stella pensa e mede bem o que pretende dizer. Ela parece serena, com um ar de que não está nem aí, só que o misto de seriedade e ironia é cirúrgico. Sua personagem no filme “Meninas”, a Dolores, é terrível. É carrancuda, mal humorada. Stella diz que até já teve essa fase de Mulher à Beira de Um Ataque de Nervos. Mas passou.

Eu, como entrevistador, quis tirar a prova. E provoquei Stella a entrevista toda:

Hamilton Rosa Jr. – As Meninas que já foram entrevistadas estão dizendo que eu tô muito cheio de conversinha, dizendo só coisas que elas querem ouvir e massageando a vaidade delas…

Stella Vilella – Verdade, tá excessivo, você tá massageando o ego de todas.

HRJ – Mas eu não vou ser assim com você, tá bom?

Stella – Vamos ver (risos).

HRJ – Sua personagem, a Dolores, é corrosiva e não tolera nada. Me disseram que você mais jovem era assim e que agora ficou mais mole. É verdade?

Stella – Você eu, ou você a Dolores? (Risos)

HRJ – Você, Stella.

Stella – Olha, eu não sou muito de festa, mesmo. Não sou uma pessoa expansiva que bota tudo pra fora, ao contrário, sou contida, e, sabe, esse contido não é uma coisa muito boa, não. Porque eu já tive um infarto e, enfim, eu guardo muito os sentimentos. Mas eu procuro administrar isso, não chego a ser mal humorada, só sou bem realista. (risos)

HRJ – Como você visualiza a Dolores?

Stella – Ah, ela é muito amarga. Ela deve ter levado muita porrada, sofrido muitas desilusões, porque ela não acredita mais em nada. Perdeu a fé nas pessoas. Cada vez que as amigas se empolgam, ela está lá com um balde de água fria, tentando mostrar que elas vão se decepcionar. Ela tem medo de viver.

HRJ – Tem um monte de gente assim por aí, né?

Stella – Tem sim. Mas, sabe, acho a Dolores comovente, porque aquele seu jeito corrosivo é uma forma de defesa dela. E o desânimo? Quem não se sente desanimado às vezes? (risos). Veja o que está acontecendo agora, além desse desgoverno, com a pandemia, nós artistas, fomos os primeiros a sofrer com a quarentena, e agora estamos sendo os últimos a retomar nossos trabalhos.

HRJ – A primeira vez que te vi atuando no palco, você demonstrou uma presença de cena, uma atenção ao tempo da fala e… Tudo pareceu feito de uma forma simples e, você dominou a peça do começo ao fim. Depois vi dois curtas que você trabalhou e senti de novo essa presença. É sempre assim Stella?

Stella – Não sei se tenho esse domínio todo. Vou lá e dou o meu melhor. Gosto de testar as coisas no palco. E tenho muito senso de observação… Vou construindo os personagens, usando minha intuição…

HRJ – Dizem que Marlon Brando gostava de testar os diretores. Na hora da filmagem ele entregava duas cenas aparentemente idênticas para a câmera, só que numa, ele estava realmente trabalhando com seu interior, e na outra ele apenas dava uma indicação da emoção. Então, ele observava, qual o diretor escolhia. Se o cineasta escolhesse a errada, pronto, ele engolia o diretor. Stella, alguma vez você já fez isso?

Stella – Não, de forma alguma. Jamais testei os diretores. Defendo com unhas e dentes o meu personagem e o diretor vai ter que me convencer a tentar outros caminhos. Não, que eu não o faça, mas vou tentar provar que estou no caminho certo… Já aconteceu com alguns diretores de eu seguir pelo caminho sugerido por ele, e… gostar. O diretor tinha razão.

HRJ – É, mas você está expondo seu interior e é chato quando você encontra alguém que não sabe ver e entender o seu trabalho, não acha?

Stella – Acho, claro… mas eu tenho meu jeitinho (risos) e acho que no fim, o diretor também acaba gostando do que eu vou mostrando…

HRJ – Meu Deus, você é mineira da gema mesmo! (risos)

Stella – É, eu sou assim… (risos).

HRJ – Teatro e cinema são muito diferentes pra você?

Stella – Sim. O Teatro é mais visceral. Traz um desafio diário que é: você precisa de uma motivação pra fazer de novo amanhã. Cada dia é um novo dia, no teatro. E você tem que tomar cuidado para não cair na repetição, tornando sua atuação mecânica. No cinema, você corre outros riscos. Você ensaia, mas não existe aquele medo de estar ao vivo e errar, o desafio em cinema está em encontrar o ponto. A hora que você encontra, o diretor filma e está resolvido.

HRJ – Concordo em parte com você. Nem sempre em cinema, uma interpretação parece uma repetição. Quando eu vejo o Chaplin, por exemplo, cada vez que você assiste parece que existe um gesto novo, que você não reparou. O trabalho de composição é tão elaborado, que passa dez anos e você assiste de novo, e alguma coisa nova transparece…

Stella – Sim, o Chaplin é maravilhoso…

HRJ – É por isso que são poucos os grandes artistas… Me conta uma coisa que você acha insuportável. Aliás, tem muita coisa que te irrita na vida, Stella?

Stella – Vixi, muitas…

HRJ – Eu não suporto a normalidade, os discursos pré-fabricados, o cotidiano regulado, adequado, conformado, e de vez em quando saio na rua, tipo Hamilton, o Louco, e grito. Você já fez isso na vida?

Stella – (risos) Dá vontade, mas eu sou uma pessoa discreta, contida… Grito dentro do carro, mas na rua, não tenho coragem.

HRJ – Como é sua paciência com essa galera jovem, que acha que é esperta, conhece tudo, mas ignora uma imensa quantidade de coisas que é essencial?

Stella – Eu procuro ser generosa com eles. Afinal, eu também fui jovem, eu também me achei ingenuamente experta.

HRJ – Ah, mas dá pra ser generoso com um ator que chega ao set sem o texto decorado depois que você passou a noite inteira decorando as suas falas?

Stella – Taí uma coisa me irrita! Daí é demais, né? (intimamente ela manda a PQP)

HRJ – E ator veterano que se acha então: você consegue fazer mais uma nova peça com aquele tipo de ator que tem mania de representar apoiado sempre nos mesmos truques, e que faz sempre do mesmo jeito?

Stella – (Risos) Não vou julgar. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é (risos). Mas que é muito chato trabalhar com gente arrogante assim, é.

HRJ – Você não acha que Campinas é uma cidade pequena demais para uma pessoa que investe tão profunda e apaixonadamente no seu trabalho?

Stella – Houve um momento em que pensei nisso. Mas acho que minha personalidade me fez ficar assentada por aqui mesmo. E adoro fazer teatro em Campinas.

HRJ – A quarentena foi extensa, praticamente um exílio de quase dois anos. Neste período, do que você sentiu falta?

Stella – Senti saudades do silêncio coletivo de quando você assiste uma boa peça. Sabe, aquela coisa que você sente em comunhão junto com muitos outros? Faz muito tempo que não sinto isso.

HRJ – Quando você volta ao teatro, Stella? Tô com saudades de ver você atuando outra vez no palco.

Stella – Estou retomando os ensaios da peça “Quarta Feira, Lá em Casa”, do Mário Brasini. Eu e o Fernando Andrade, fazemos duas senhoras de 70 anos, que tradicionalmente se encontram toda quarta, para tomar um chá. E, nestes 50 anos que elas fazem isso, ainda descobrem segredos, que vão sendo revelados de forma tragicômica. Você já viu essa? Se já viu, volta de novo. Nosso teatro precisa dessa retomada.

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