O tamanho do palco e o tamanho do mundo

Hamilton Rosa Jr – Ariane, você é cineasta, professora, escritora, atriz, qual dessas vocações se manifestou primeiro em você?

Ariane Porto – Ser atriz é uma coisa que está dentro de mim desde que eu me entendo por gente. Por intuição, eu diria que ser escritora era minha outra inclinação. Acho que essas duas vontades, no começo brigavam por que eu achava que elas eram muito diferentes. Eu não percebia que ambas faziam parte do mesmo universo. Depois eu compreendi e arrumei um jeito de conciliá-las.

HRJ – Falando assim até vejo uma pessoas muito racional se formando, mas olhando suas fotos, vejo um brilho no olhar que me parece de uma beleza caótica…

Ariane – (risos) Sim, eu era jovem, e digamos bem intensa. Eu queria chacoalhar o mundo, queria mudá-lo. E pra mudá-lo, eu sabia que tinha que fazer diferente. Veja a contradição: eu queria ser atriz, mas achava um horror o exibicionismo. Eu não queria ser vista como um doce exibido em vitrine de padaria. Subir num palco, para mim, era uma missão muito maior. Eu achava que com um espetáculo você podia educar e mudar o ponto de vista das pessoas.

HRJ – A Teresa entrou na sua vida neste início?

Ariane –  Não. Meu primeiro contato com o teatro foi ainda adolescente, eu participava de todas as peças na Escola Notre Dame. Depois eu queria estar em todo lugar que se falasse do assunto. Eu ia em palestras, fazia cursos, assistia todas as peças na cidade. Queria entrar na faculdade de Cênicas, mas a Unicamp ainda não tinha o departamento, então eu ingressei no curso de Ciências Sociais. Eu adorava o curso, o ambiente universitário naquela época era muito efervescente, as pessoas não eram tão individualistas como hoje,  de modo que frequentando uma tribo daqui e outra dali, esbarrei no Pessoal do Vitor, um grupo de teatro experimental que se encontrava na Unicamp. A turma era coordenada pelo Celso Nunes e tinha como professores a Marcília do Rosário, o Reinaldo Santiago, o Paulo Betti, Eliane Giardini, e o querido Marcio Tadeu. Foi um período de aprendizado incrível.

HRJ – Isso foi nos anos 80?

Ariane – Começo dos anos 80. Só conheci a Teresa em 1984, ela veio a Campinas dar um curso, promovido pelo Marco Ghilardi, e aí logo depois ela me convidou para fazer parte da montagem de “Liberdade, Liberdade”, do Millor Fernandes e Flávio Rangel. A Teresa tinha um modo muito particular de trabalhar. No palco tinha uma firmeza uma veemência tamanha, que era impressionante. Ela exigia muita disciplina, atenção a pesquisa, a técnica, a cada nuance do texto, era detalhista, rigorosa, mas ao mesmo tempo respeitava muito o ator  Trabalhava a composição do personagem, estimulando o ator a encontrar as sutilezas nas falas, no gestual. Tinha uma devoção apaixonante. Quem a conheceu lembra, ela era uma mulher baixinha, mas com um empenho, uma energia de mover montanhas. Tudo que ela punha a mão, no começo parecia pequeno, mas de repente ia tomando uma proporção… E ela tinha um histórico intimidador. Em Campinas, tinha fundado o TEC, tinha implantado o Curso de Teatro no Conservatório Carlos Gomes, tinha criado o grupo Rotunda. Por um período, ela se afastou da cidade para ficar focada na Escola de Arte Dramática da USP. Mas  quando voltou para Campinas com o “Liberdade, Liberdade”, foi como um furacão. Ela veio com a ideia de acabar com a carência de teatros que havia na cidade. Ela queria criar um novo teatro pra se apresentar da forma independente como gostava. Mas num primeiro momento a gente não tinha esse espaço, então ela ergueu um circo, chamava-se Circo do Vento Verde.  E foi um sucesso tremendo.

Paralelo, a isso, nos bastidores, nos demos tão bem, que a gente não se separou mais. Construímos uma vida juntas, que foi uma beleza, tanto profissional como pessoal.

Então, quando ela deu o passo seguinte, abrindo o Teatro de Arte e Ofício (TAO) eu já não me via mais como uma atriz, eu formava uma dupla de produção artística junto com a Teresa. E ambas estávamos nos sentindo realizadas, orgulhosas por trazer um novo espaço para os grupos regionais se apresentarem.

HRJ – O Teatro de Arte e Ofício surgiu então para cobrir uma carência?

Ariane – Havia dois teatros: o Castro Mendes, o Centro de Convivência e ponto. Os grupos teatrais da cidade eram muitos e, naquela época era um Deus nos Acuda, porque além de se digladiar para se apresentar nos locais, havia as grandes montagens que vinham de São Paulo e ganhavam a preferência. Não adiantava você ser do Téspis, e ter prestígio, você tinha que batalhar. Agora imagina se o seu grupo fosse de periferia: onde ia se apresentar?

HRJ – Gostaria de ressaltar para quem está lendo essa entrevista que, esse encontro que estamos tendo, está acontecendo justamente na Câmara Municipal de Campinas e que você está aqui hoje para um debate com os vereadores. Sua intenção é levar adiante a proposta  de um Projeto de Lei que denomine o Teatro de Arena no Centro de Convivência Cultural, como Teatro de Arena Teresa Aguiar. O que significa encampar essa homenagem póstuma, Ariane?

Ariane –  Pra Teresa, não significa nada. Ela tá num outro plano, num outro mundo. Mas para nós que estamos  aqui essa homenagem representa muito. Com, o Tec, o Rotunda, o TAO e, sem esquecer o Conservatório Carlos Gomes, a Teresa pavimentou a estrada para no mínimo  cinco gerações de atores da cidade.  Então essa homenagem é pra cada trabalhador das artes, essa gente maravilhosa, guerreira, amassada, barbada, cansada, contrariada, mas sobretudo sonhadora. Gente  que contribuiu para o que o teatro foi, é, e pelo que ele pode se tornar no futuro. É também uma homenagem as mulheres, as incentivadoras da cultura e das  artes neste país. Imagina, como deve ter sido para a Teresa nos anos 50, vivendo num mundo machista e preconceituoso, subir num palco para assumir a direção de um espetáculo. O teatro, é claro, tinha a grande dama  Cacilda Becker, mas não havia espaço para mulheres na direção. Não havia diretoras. A pioneira neste quesito foi a Teresa. Imagina como essa mulher teve que lutar para se impor? Imagina ela em Sâo Paulo, estudando direção com o Adhemar Guerra. Imagina ela dirigindo os maiores nomes do teatro da época, como o a Cacilda, o Paulo Autran. Ela colaborou e foi grande amiga do Antonio Abujamra.  Quando, nos anos 80, o Teatro Brasileiro de Comédia  (TBC) era apenas uma memória na vida da classe artística de Sâo Paulo, ela se engajou com o Abujamra no projeto de recuperar artisticamente o TBC. Aliás, você sabe quem inaugurou o Teatro de Arena? Foi a Teresa. Para encenar a tragédia grega Hipólito, ela moveu mundos. Trouxe 17 caminhões de areia ao teatro, para transformar o palco num deserto e fez uma montagem esteticamente inovadora, toda iluminada por tochas. Ela tinha essa loucura de querer colocar o público numa imersão completa. E, veja só, era uma pessoa com um metro e meio de altura. Puxa…

HRJ – O  TAO depois virou produtora cinematográfica?

Ariane – Sim, em 2012. Era um antigo sonho, meu. Mas nos anos 80, eu achava que estava muito longe disso. Foi a Teresa que me mostrou que nada estava distante se você tanto queria. Então uma nova força de vontade foi surgindo dentro de mim e, aos poucos, eu construí esse plano. A vontade de trilhar esse caminho artístico também veio da minha inclinação para a escrita, da minha vontade de narrar histórias cada vez mais visuais. Em retrospecto, eu vejo como essa construção foi acontecendo, como artista e como gente. E, sabe, é muito interessante como isso me preenche, porque eu não consigo dissociar a profissão de artista  com a pessoa que eu sou. Acho que todo artista tem isso, né? Uma vez que a gente entende a nossa vocação, não há como se desviar: Ou a gente é, ou a gente é.

HRJ – Engraçado sua observação. O último governo tentou vender o artista de forma negativa, mostrando que artista ou é vagabundo ou tem problema. De repente, no senso comum, esse conceito começou a largamente ser difundido como verdade. Tenho um amigo que veio me pedir conselho: disse que o filho tinha contraído esse maldito vírus do teatro e ele queria saber se não tinha um jeito de demovê-lo dessa ideia.

Ariane – E o que você disse?

HRJ – Falei que no nazismo eles também viam o artista como uma pessoa doente. Os expressionistas eram tratados como artistas degenerados e eram executados. Na Alemanha da época, não viam função prática pra gente daquela laia na sociedade.

Ariane – E ele gostou do que você falou?

HRJ – Não. Mas aproveitei o mal estar, pra causar mais mal estar ainda. Falei que era tarde demais para convencer o filho dele. E que era uma doença mesmo e não tinha cura.

Ariane – Que malvado você! Mas, sabe, pior que na universidade, você vê esse conceito disseminado até em alunos do Instituto de Artes. Na Unicamp, de vez em quando aparecia um aluno dizendo que estava desistindo, porque tinha se convencido de que morreria de fome se seguisse a profissão. Então um dia eu me irritei e falei, não cobrem da arte aquilo que ela não é obrigada a lhe dar. Se você conseguir viver da sua arte, maravilha, mas não vai jogar fora um dom que você tem, por conta das dificuldades do mercado. Em qualquer profissão você encontra dificuldades. No começo, eu queria viver do teatro, mas eu não conseguia. Eu tinha que buscar sustento fora, e só me dedicava ao teatro, à noite e no fim de semana. Claro que se o dinheiro viesse pela arte, seria maravilhoso. Mas eu não via como obrigação a arte me sustentando. O ganho não começa assim. Existe muita coisa em jogo que muitos não percebem quando dizem não ao teatro. O teatro é muito mágico, e a vida também é muito mágica. Os materialistas não percebem isso. Eles não percebem que é uma celebração. Depois, do ponto de vista íntimo, quando você sobe no palco, o ganho se apresenta de outra forma. Ele atinge primeiro a sua percepção. Você aprende a enxergar o ser-humano com mais profundidade, ouvindo humildemente cada companheiro, você investiga as emoções dos personagens e investiga suas próprias emoções. Você aprende a entender melhor as dores, as alegrias e sentimentos mais complexos que você nunca tinha se dado conta. Sabe, eu olho pra trás, e vejo como escolhi um caminho abençoado. Uma trilha que me deixa feliz, porque faz eu me sentir muito humana.

HRJ – Minha querida, muito lindo ouvir essas suas palavras. Você sabe que estou fazendo um documentário sobre a história do teatro campineiro. Já são quase cinco meses que estou entrevistando figuras chaves da classe artística, e decidi estruturar o roteiro usando as quatro estações, porque entendi que o teatro de Campinas teve uma primavera. Começou lá nos anos 60 e continuou pelos anos 70. Depois veio o verão do teatro nos anos 80 e 90, seguido do outono, que aconteceu na virada do ano 2000 e, levou o teatro ladeira abaixo. Hoje, depois do Covid, acho que estamos no inverno. A pergunta que eu quero colocar no final do doc é: vamos ter uma nova primavera, ou vamos continuar num inverno sem fim?

Ariane – Interessante… Acho que a primavera é um estado latente. Ela depende da gente. Se você me perguntar porque os anos 80 foram tão profícuos e agora não estamos colhendo o que colhíamos, eu vou te dizer uma verdade, com o risco de polemizar: naquela época a gente fazia uma arte que instigava e gerava debate. A gente procurava jogar certas questões sociais. Ao problema da fome, da educação, da saúde, do saneamento básico. Era uma arte participativa, de comunicação direta com o público. A gente investia o que tinha e o que não tinha por essa ambição. A gente corria atrás do público. Tá, você pode por a culpa na tecnologia de hoje, que se rivaliza com a gente porque traz infinitas formas de atrair o público, mas será que é só isso mesmo?

Nos anos 80, a gente investia em ações formativas. A função do artista é uma função social. Ela deve dialogar com a comunidade, falar do que nós reconhecemos no outro e no que nos identifica, com o que temos de semelhantes. Outro dado negativo veio com a lei de incentivo. Veja não estou falando mal da lei de incentivo, estou falando da forma como o artista começou a encarar a lei de incentivo. Como o trabalho do artista já está pago antes de estrear, qual é o empenho dele para atrair o público? Qual é o esforço dele para a formação de um público? Ele vai se especializar em formular maravilhosamente seus projetos e virar um profissional de editais. Ele vai ganhar o seu dinheiro pela expertise em redigir projetos, pouco se importando com a comunicação com um público ou com o prazer de realizar o espetáculo. Isso é uma deformação de uma política cultural. A gente pode dizer que também é culpa exclusiva disso, claro que não.

Podemos encontrar outros pontos pra investigar. O fato é que, nos anos 80 as agendas do teatro eram disputadas a tapa. A gente preparava o espetáculo, fazia panfleto, os atores saiam na rua vestidos a caráter, fazíamos o maior barulho e depois, quando a gente olhava pelo viés da cortina, via o teatro lotado. As pessoas conversando, tinha noites no Centro de Convivência, que dava pra sentir a expectativa da plateia. E, não era espetáculo com o Paulo Autran, não. Era espetáculo do pessoal da casa, dos atores de Campinas. E depois vinha, a cereja do bolo: a campanha de popularização do teatro,  onde se dava espaço para todos os grupos da cidade democraticamente, exibir por uma noite, a sua peça, a preços populares.

HRJ – Mas a campanha de popularização durava só um vez?

Ariane – Verdade. Mas, na entressafra, a classe artística voltava para os ensaios super estimulada, em busca de desenvolver um espetáculo melhor ainda, mais requintado, mais ambicioso. O que aconteceu para essa fórmula desandar? A gente se acomodou e deixou o público ir embora. A gente deixou as velhas fórmulas de promoção e não aprendemos uma nova forma eficiente de atrair a plateia. A gente não se fez mais tão querido e desejado. A gente se fechou. Ah, alguns vão dizer que é a culpa da Netflix. Pessoal a TV sempre foi vista como culpada. Ah, então é o celular. Eu não vejo assim. Haverá uma nova primavera, sim. O teatro não vai acabar. Virá uma nova geração aí. Qual a forma que eles vão desenvolver como chamariz para o público. Eu não sei.

 HRJ – A Teresa Aguiar dizia que a cada espetáculo, ela se entregava ao altar da arte. É esse empenho que você acha que perdemos?

Ariane – Falta muito disso hoje. Você ouvir o terceiro sinal te chamando para entrar no palco e você entrar lá se doando para a plateia. O público sente quando isso acontece. Isso tem uma grandeza cósmica. A gente banalizou essa magia. Tá faltando a inquietação para se reinventar. Tá faltando aquela escalada louca, que começa lá na rua, num desfile barulhento dos atores, parando o trânsito, promovendo o trabalho, a temporada, arrogando em você mesmo, a importância que aquele espetáculo vai ter. Uma experiência única e maravilhosa que a plateia vai assistir e não vai esquecer.

Não percam: semana que vem teremos mais uma entrevista com uma personalidade marcante do teatro campineiro.

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