Dona Léa fala de um amor maior que a vida

Na altura de seus 83 anos, Dona Léa Ziggiatti Monteiro está aposentada, mas continua a ser a matriarca das artes na cidade de Campinas. Passou a direção geral do Conservatório Carlos Gomes para a filha, a musicista Lara Ziggiatti, e a direção administrativa para o filho Evandro Ziggiatti. Quando propus a entrevista, os filhos pediram a garantia de que eu não fizesse perguntas muito extensas, para não cansar a mãe. Mas logo que Dona Léa nos viu, seus olhos brilharam e ela nem precisou se esforçar para ser uma excelente entrevistada e uma grande anfitriã.

Ela estava radiante.

Muitos atores, diretores, artistas plásticos passaram pelo Conservatório e se profissionalizaram, alguns se destacando no cenário nacional. Como a atriz Regina Duarte, Daniela Galli, Joel Barboza, Hélcio Henriques, Ana Lúcia Vasconcelos, Ruth Elizabeth, Inês Fabiana, Maria Luíza Vasconcelos, os diretores Edgar Rizzo (Tespis), Abílio Guedes, Jonas Rocha Lemos (Teatro Evolução), o diretor do Lume, Luiz Otávio Burnier, Zé de Oliveira, Antônio Carlos (do Sotac), Robson Loddó (Tespis), Edigar Contar (da CPA). O artista plástico Egas Francisco, o criador de bonecos Jésus Sêda, Paulo Cheida Sans, Álvaro Azzan e o artista multimidia  Fernando Grecco, 

Procuramos um espaço ao ar livre para conduzir a entrevista no Conservatório. Um lugar fresco com sombra e muitas flores, uma grande paixão da Dona Léa. E enquanto a gente microfonava nossa entrevistada, ela muito serena, vasculhava as flores com os olhos e se detinha em uma pequena nuvem de abelhas.

Dona Léa Ziggiatti Monteiro – Veja, quantas abelhinhas, elas estão aqui em volta, mas elas não picam. O Conservatório é cheio de bichinhos assim. Não fazem mal e só embelezam a nossa escola…

Hamilton Rosa Jr –  As plantas e flores também estão lindas, Dona Léa. 

Léa São minhas queridas. Eu sempre adorei cultivar flores e estar perto da natureza e é tão bonita vê-la florescer…

Hamilton – Logo que cheguei aqui e vi essa beleza, pensei: puxa, mais que uma professora, a dona Lea é uma semeadora. 

Dona Léa Semeadora?

Hamilton – Sim, você cuida para que as plantas floresçam como cuidou para que seus alunos tivessem a oportunidade de florescer o talento…

Dona Léa –  Verdade. Eu tenho as duas coisas aqui. O Conservatório conquistou seu espaço primeiro no Centro da Cidade (ficava na Rua Regente Feijó, perto da Catedral Metropolitana, depois foi para um sobrado na Moraes Sales), mas eu sempre sonhei em trazê-lo para cá. A natureza é um espaço muito inspirador para o artista.

Evandro Ziggiatti – Mãe, conta pra ele sobre a sua Cantata para a Primavera…

Dona Léa Minha Cantata?

Lara Ziggiatti (explicando) – Ela compôs o hino da escola. Tem um verso maravilhoso que diz: “escola de som e de riso, escola com gosto…”

Dona Léa … de flor” (sorriso). Eu fiz a letra e o meu amigo Orlando Fanelli criou a melodia. Todo mundo que estudou aqui no Conservatório conhece a canção: 

“É escola de som e de riso. 

É escola com gosto de flor, 

ao brincar nós sabemos que a música,

enche a vida de sonho e de amor”.

Por décadas tivemos crianças aqui cantando esse hino bem alto (risos). A Lara e o Evandro cantavam desde pequenos. Os dois estudaram música.

Evandro – Eu estudei, mas quem deu continuidade foi a Lara, eu preferi o caminho da arquitetura (risos).

Hamilton –  Estamos falando bastante de música, mas o Conservatório ficou famoso por seu teor multidisciplinar. Formando grandes diretores de teatro, atores e artistas plásticos…

Dona Léa Sim, quando eu assumi o Conservatório, ele era uma escola tradicional de música e dança, daí eu tive a ideia de ampliar o leque. Eu era professora, dava um curso de Educação Artística, onde eu tentei integrar as artes plásticas dentro da minha aula com a ajuda do Egas (o artista plástico Egas Francisco). Depois pensei em expandir essa ideia, criando cursos técnicos profissionalizantes onde o aluno pudesse entrar e descobrir a sua vocação. Mas para isso tínhamos que ter bons professores…

Lara – A mamãe ia buscar o melhor corpo de professores para ensinar nossos alunos. Para o Curso de Teatro, por exemplo, ela conversou muito com a Tereza Aguiar. E as duas foram buscar os professores na USP…

Dona Léa Ah, eu era muito chata (riso). Eu queria qualidade. Tinha gente que entrava para aprender a tocar piano, e passava a fazer teatro, dança. O  profissional das artes saia muito bem ilustrado para trabalhar na área cultural. E continuamos assim, né, filha? São poucas escolas que fazem isso por aqui…

Lara –Tem outras escolas de artes que trabalham esse método hoje, mas quem começou isso foi você, mãe. Elas se inspiraram no seu trabalho.

Hamilton – Você é uma pioneira das artes, Dona Léa. Aliás, acho que Campinas deve muito a sensibilidade de mulheres fortes como você e a Lina Penteado. Não fosse o trabalho formativo de vocês duas, como seria a arte de Campinas hoje?

Dona Léa Olha, é verdade, tinha eu, tinha a Lina, e também outra mulher que admiro muito que é a Olga (a pianista e professora Olga Rizzardo Normanha). Todas dedicamos a carreira ao sonho de fazer da cidade um polo de cultura.

Dona Léa Li aqui que o Conservatório foi fundado em 1927. A senhora  praticamente nasceu aqui dentro?

Dona Léa Nasci (risos). Quem fundou o Conservatório foi meu tio Miguel Ziggiatti, que ficou a frente da escola por 35 anos. Ele foi meu professor. Então desde criança esse espaço esteve presente na minha vida. Depois em 1961, ele me passou o Conservatório para eu dirigir…

Hamilton – Em 1961? Imagino que você devia ser muito forte para conseguir impor o que queria? Você era muito brava, Dona Léa?

Dona Léa Não, eu sempre fui boazinha… (riso dos filhos).

Evandro – Era sim. Ela queria empenho, qualidade e fazia tudo do jeito dela.

Dona Léa Eu não era brava. Eu era moderna, eu buscava parcerias. Se eu brigava, eu não lembro. Eu gostava de todo mundo. A gente que lida com as artes é assim. Não quer o mal de ninguém.

Hamilton – Mas nesse tempo todo você nunca teve nenhuma frustração?

Lara – Ela teve, sim. Ela ficou muito sentida, por exemplo, quando derrubaram o Teatro Municipal (O teatro foi demolido em 1965. Para alguns, derrubaram a casa de espetáculos por “razões obscuras”, favorecendo grupos que herdaram o terreno. Outros defendem a memória do ex-prefeito Ruy Novaes, que autorizou a demolição embasado em laudos técnicos que o alertavam das condições precárias da estrutura.).

Dona Léa É, eu tava de lua-de-mel quando aconteceu. Se eu tivesse aqui quando decidiram, ah, se eu tivesse aqui…

Hamilton – É, derrubaram, prometeram que seria erguido um novo teatro no lugar e isso nunca aconteceu.

Lara – Essa história da demolição do teatro é polêmica…

Dona Léa É ridícula.

Hamilton – A senhora tem uma carreira muito representativa como jornalista. Você poderia me falar um pouco desse trabalho?

Dona Léa Acho melhor mostrar do que falar…

(Lara, Evandro e dona Léa encaminha nossa equipe para uma sala onde estão espalhados exemplares de jornais (Correio Popular e Diário do Povo) dos anos 50, 60 e 70 com diversos artigos de uma página assinados por ela). 

Numa coluna escrita no Correio Popular em 1974, Léa apresenta o ator, mímico e diretor Luiz Otávio Burnier.

Hamilton –  Nossa que emoção, dona Léa. Eu tive aulas com o Burnier, quando fiz Cênicas da Unicamp…

Dona Léa Pois ele estudou aqui antes de ir para a França.

Hamilton – Esses jornais demonstram que a senhora teve uma intensa vida como jornalista. Quanto tempo você atuou na imprensa?

Dona Léa  Quase 40 anos… A minha mãe sempre incentivou os estudos em minha vida. Ela dizia que eu tinha que estudar para ser uma musicista. Fiz um pouco mais do que isto. Fiz faculdade de direito, me formei jornalista, trabalhei como repórter por gostar muito de escrever, e escrevi livros. Acredito que a minha formação cultural me deu liberdade para escolher não apenas um caminho, mas vários e continuo me sentindo feliz por isto.

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