Em busca da pureza perdida do teatro

Hamilton – Pra começar, Antônio, acho muito linda aquela história que você conta de como foi alfabetizado lá em Minas…
Antônio Carlos da Costa –
Eu era um garoto pobre da roça e meu pai, muito imaginativo, ilustrava nossa vida, tocando violão e criando passatempos inusitados. No caso da alfabetização, ele usava cascas de melancia para ensinar as letras pra gente. Era uma brincadeira, mas com cinco ou seis anos eu já lia sentenças inteiras e também já arranhava algumas músicas no violão.

Hamilton – Em que parte de Minas estamos falando?
Antônio –
Sul de Minas, na cidade de Ilicínea, perto de Alfenas.

Hamilton – Então a arte já estava na sua vida desde pequeno?
Antônio –
Estava. Eu olhava as pessoas, observava o jeito, e depois imitava. Meu forte era a abordagem cômica. Ouvia histórias e encenava, puxando pra paródia. Sabe, muita gente conta que teve problemas com a família para abraçar a carreira, mas eu não senti isso. Eles me incentivavam. Meu pai, sobretudo, era o maior entusiasta. Ele adorava ver minha inquietação e me deixou livre para eu experimentar de tudo. Daí talvez a minha versatilidade. Eu interpretava, eu tocava violão, eu gostava de desenhar, escrever, e também mexer com argila e fazer moldes de cerâmica. E olha, eu não fazia moldes tradicionais, não. Eu queria criar coisas inusitadas, sempre quis ser diferente.

Hamilton – Mas ainda não era profissional?
Antônio –
Que? Estou te contando do começo. Depois apareceu algo na cidade que abriu ainda mais minha cabeça: um circo mambembe. Eles chegaram na cidade e, logo na estreia, ver aqueles artistas no picadeiro foi uma experiência única. Voltei lá na noite seguinte, e depois na terceira noite e… Ali em compreendi onde eu queria estar. Eu queria fugir com o circo (risos).

Hamilton – E você fugiu?
Antônio –
Não. Mas fiz um grande amigo lá. Fiquei muito amigo do palhaço. Ele era tão incrível… que passei a segui-lo. Onde ele ia, eu estava atrás, querendo conversar, querendo aprender. Foi uma época muito gostosa. O contato com esse artista foi decisivo para eu escolher o que eu faria depois. Ele me inspirava, pra dizer a verdade, me inspira até hoje. A figura do palhaço me acompanha. Eu o incorporei. Na galeria de personagens que já vivi nestas várias décadas no palco, o palhaço tem um papel essencial.

Hamilton – Foi tão decisivo quanto foi sua formação no Conservatório Carlos Gomes
Antônio –
Sem dúvida. O palhaço me ensinou a amar ainda mais as artes. O Conservatório Carlos Gomes me fez aprender a diferença entre amar e me tornar um profissional.

Hamilton – Puxa, você tocou num ponto que é o mais complicado para o artista: como equilibrar na profissão o lado criativo com o pragmático.
Antônio –
Sendo categórico, Hamilton: você não sobrevive, se você não consegue conciliar o artístico com o empresarial. É muito difícil. Você tem que ser muito versátil e organizado, caso não seja, a profissão se torna inviável. Nesse sentido, acho que tive sorte com minha vocação paralela. Estudar contabilidade me ajudou a ter sempre os pés no chão. Depois fui trabalhar num banco e fiz administração de empresas na faculdade. Sem essa formação, tenho certeza que hoje eu não teria um teatro. Sem essa vocação, aliás, eu não teria saúde financeira para enfrentar a pandemia que nos deixou parados por quase três anos.

Hamilton – Falando no Covid, perdemos amigos em comum durante esse período e também tivemos muitos conhecidos que entraram em crise. Como foi esse período pra você do ponto de vista emocional?
Antônio –
Foi um presente de grego que eu ganhei no dia do meu aniversário. No dia 15 de março de 2020, recebemos a notícia de que teríamos que fazer o lockdown. E, enfim, foi em toda parte. O mundo parou. Inicialmente eu fiquei sem chão. Toda minha vida era pautada aqui no teatro escola. Então do dia pra noite tivemos que encerrar todas as nossas atividades. Fechamos a escola de teatro, encerramos as apresentações… e, olha, de repente bateu o desespero porque não era só a minha sobrevivência que estava em jogo, era a de muitos profissionais e suas famílias que trabalhavam no Sotac. Então eu me senti muito responsável, precisava criar uma equação que não tirasse o chão de todo esse grupo. A primeira saída que pensei foi em colocar os vídeos dos espetáculos que tínhamos no you tube, outra solução foi em continuar os cursos com aulas online. Acontece que vender esse material na internet não é tão simples. O teatro é algo que funciona bem no calor do presencial, ele fica frio quando vira um produto transmitido por mídia. Fiquei bem tenso nesse período. Ainda que tivesse uma reserva, a gente não sabia quanto tempo a pandemia ia durar. Não gosto nem de lembrar… Se o Sotac não tivesse com a saúde financeira em dia e sem essas reservas, imagina como estaríamos hoje?
Então eu tive que administrar isso, pra não enlouquecer. Depois num segundo momento, tentei amenizar o lado psicológico inventando outras ocupações. Claro que não foi um mar de rosas. Tinha dias que eu ficava pra baixo, mas fui me reinventando. Criei um programa de culinária no you tube, depois um de artesanato, comecei a interagir mais com as pessoas… e acho que aí compreendi que sempre que tive dificuldades em me reinventei. Para o artista, reinventar é a chave do negócio.

Hamilton – Superado esse momento, Antonio, você voltou às atividades presenciais. Tá tudo bem agora? Como você está sentindo esse novo momento?
Antônio –
Não voltou ao que era. O público está vindo, mas ele está sensivelmente menor. Acho que o comportamento mudou com a pandemia. As pessoas se habituaram a ficar mais em casa. E a tecnologia fornece atrativos que inclusive, desencorajam as pessoas a saírem. Se temos um desafio agora é o de fazê-las voltar. Precisamos buscar novas formas de atraí-las.

Hamilton – Preciso te contar: conforme você foi me apresentando as dependências da escola e do teatro, percebi como você fica altivo e orgulhoso de falar do empreendimento que você levantou aqui, afinal seu espaço toma mais de metade do quarteirão… Você construiu tudo apenas com o dinheiro dos espetáculos?
Antônio –
Sim. Trabalhei na minha carreira com dezenas de gêneros de espetáculos, fizemos muitas excursões pelo interior, mas foi, sobretudo, o teatro infantil que permitiu eu chegar nesse ponto.

Hamilton – E agora, Antônio, pra onde você vai?
Antônio –
Antes da pandemia eu tinha planos de construir um segundo teatro, maior do que esse aqui, encima do terreno do estacionamento. Eu tenho até a planta desenhada. Mas agora, não sei… qualquer empreendimento precisa dar retorno e, levando em consideração a forma tímida que a plateia está voltando., acho que não é o momento. Sabe, a história da construção do Sotac é muito interessante. Esse local aqui onde estamos era um casarão velho e estava abandonado. Logo depois que eu comprei, descobri que ele tinha sido invadido por pessoas em situação de rua. Vim conversar com o pessoal e descobri entre eles, um rapaz que tinha sido porteiro do meu prédio, e conversando com os outros, vi que a maioria, era de gente trabalhadora, mas desempregada. Fechamos um acordo: eu empreguei todo mundo para reformar a casa e construir o teatro.

Hamilton – Naquela lista de nomes que tem na placa de inauguração na porta do teatro, estão os nomes deles?
Antonio –
Estão sim. Tenho o maior orgulho de ter construído esse espaço com eles.

Hamilton – Há um fato curioso que diz respeito a maioria de vocês da classe teatral de Campinas, quase todos vieram do mesmo ninho, vocês estudaram no Conservatório Carlos Gomes. ..
Antônio –
Olha, é verdade, a maioria dos profissionais do teatro da cidade estudaram juntos no Conservatório. Eu sou da primeira geração, que trazia nomes importantes depois como o Robson Loddó, o Jonas Rocha Lemos, o Jésus Sêda…

Hamilton – Hoje cada um tem seu grupo teatral… vocês se encontram atualmente?
Antônio –
É meio difícil hoje. Éramos muito amigos e muito unidos… e… ainda somos, porém, cada um buscou suas características e cada um se estabilizou no seu negócio. A gente se fala, mas se encontrar? Quando eu inaugurei esse espaço aqui, a primeira atividade foi convidar todas as escolas de teatro para um festival e, na ocasião, foi uma festa. Veio o pessoal do Téspis, do Conservatório, da escola do Jorge Andrade… Sabe, a gente se respeita e se admira. No passado, éramos os jovens que agitávamos a cena, um entrava no espetáculo do outro. Era outro mundo… Hoje nos somos os vovôs (risos).

Hamilton – Não meu querido, vocês são os mestres, vocês representam a nobreza do que foi o teatro e do que hoje ainda se sustenta no palco…
Antônio –
Nós aprendemos, eu aprendo até hoje. Sabe, aqui na escola, nós iniciamos crianças de seis, sete anos e eu contraceno com eles. Fico maravilhado com a espontaneidade, há algo nesse ato que é indescritível, mas quando a gente está perto, a gente sente, que é ver na sua frente o talento nascendo. No fundo esse é um ciclo e estamos aqui para dar a oportunidade para essa nova galera continuar e prosperar neste ofício tão bonito que é ser ator.

Não percam: semana que vem teremos mais uma entrevista com uma personalidade marcante do teatro campineiro.

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